Amanda Costa

Astrologia Poética

Drops Astrais

retrato de escritor: Caio Fernando Abreu:
20/11/2020


Gay Port, 12 de setembro de 2020
Caiño:
Por ironia, bem no dia do teu aniversário resolvi fazer uma faxina (momento Virgo, risos) aqui no Gabinete Astral. Ergui um brinde pra ti com o mate da manhã e parti pra lida. Estava começando a atacar um armário bagunçado quando vi a caixa com o girassol colado na tampa, aquela em que guardo recuerdos teus. De um envelope meio rasgado cai o mapa astrológico que desenhaste com caneta bic num papel azul clarinho de céu. Percorro os símbolos planetários, passo os dedos no desenho e sinto a tua presença no traçado, nos sulcos no papel, rios estreitos, veredas profundas, marcas na pele da emoção, nossas sinastrias & sincronicidades. Mas esse encontro precisou de trilha sonora. Entre fios emaranhados, pelos de gato e poeira, finalmente instalei o toca-discos que estava parado há meses. Comecei a ouvir aqueles LPs que escutávamos no teu apartamento em Sampa... os vinis espalhados no chão do escritório, ao lado da tua mesa de trabalho, as portas de vidro abertas para a sala ampla... A gente dançando “The Best” da banda Luni e rindo alto, nossos Caetanos, Cazuzas, Marinas, Billies e escorregando blues nos sofás brancos, embriagados e chorosos, ao som daquele disco riscado de Dulce Veiga que sempre repetia a mesma parte da música: “nada além de uma linda ilusão...” Saudades das canções, dos poemas, das estrelas e das conversas. E dos nossos silêncios, aquele à vontade bom e raro dos que se reconhecem e se acolhem. Nostálgica, eu? Provável. Já te disse em outra carta que a saudade é uma companhia.
Meu caro amigo, a coisa aqui tá preta, a desigualdade no planeta explodindo dolorosamente, a ganância destruindo a natureza. Sim, pior do que quando estavas por aqui. E tem essa pandemia, distopia real, novo banal. Estarias tristíssimo e muito indignado. A gente falava sobre essas coisas que estão acontecendo agora enquanto tropeçávamos nos astros, distraídos, achando que estávamos exagerando nas profecias. Ah, Caio, se não fossem os amigos e pessoas cheias de alma fazendo arte, insistindo no bom das gentes e tentando melhorar o mundo, tudo ficaria muito mais difícil.
Tem uma revista digital muito bacana aqui, a Parêntese, feita por um pessoal legal, a tua cara, adorarias participar. Nosso amigo Fischer, editor dela, chamou pra escrever um retrato teu. Não estava conseguindo fazer o texto, desatar os nós, até que resolvi falar contigo, assim, de perto, do nosso jeito. Me veio na cabeça “nossa primeira vez”, hehe. Lembra quando a gente se conheceu no saguão do hotel, durante a Jornada Literária de Passo Fundo em 85? Eu, toda nervosa e atrapalhada por chegar perto do meu ídolo literário e sem saber o que dizer, logo puxei um assunto astrológico. Que bom que funcionou, que não paramos mais de conversar e de trocar figurinhas da Terra e do céu. A gente se ajudou tanto, né? Tu continuas me ajudando. É assim desde que comecei a te ler quando tinha uns 15 anos, com O Ovo apunhalado. Quando te conheci pessoalmente eu tinha 25 e recém tinha lido o Triângulo das Águas, teu livro mais astrológico. O sonho de quando se admira muito alguém aconteceu... Abracadabras possíveis. Foi lindo. É.
Lindo também é ver que mesmo com tua partida para navegar outros planos há tanto tempo, 24 anos, bah, dois ciclos completos de Júpiter, tu continuas conversando com os jovens leitores. Caio, eles são apaixonados por ti! Tenho conhecido muitos deles principalmente depois que publiquei o livro sobre a Astrologia nos teus textos, o 360 Graus: Inventário Astrológico de Caio Fernando Abreu, com fotos maravilhosas tuas feitas pelas nossas queridas Sandra La Porta e Dulce Helfer. Os jovens se identificam com tua essência e com o teu jeito único e cheio de beleza na escrita. Falas as coisas que eles sentem, a dor e a delícia, os avessos, a coragem de pôr a alma a nu. Há poucos dias fiz uma live no Instagram, a convite de uma guria de 17 anos que realizou uma semana em tua homenagem nessa rede social. Ela convidou pessoas para falar, fez posts, leu livros teus ao vivo, muito massa. A conversa foi sobre a nossa amizade, a Astrologia e tudo e tal. E as pessoas conectadas fizeram perguntas. Querem saber de ti, como tu eras, o que gostavas de fazer, detalhes prosaicos, sabe, as coisas miúdas e belas. Sempre perguntam de amores & paixões, claro. Esses jovens leem tudo que escreveste, recitam trechos de memória, se sentem profundamente desvendados e libertos por tuas palavras. E, te lendo, também se sentem inspirados a escrever! Escrevem em blogs, redes sociais, revistas digitais, livros. Eventos acontecem a toda hora celebrando tua arte, lembrando tua existência e tua obra, é bonito demais! Tem filme, documentário, teatro, saraus, leituras, músicas, danças, debates. E cada vez mais estudos acadêmicos. Dizias que querias ser amado por alguma coisa que escreveste. Taí. É amor que não se mede.
Parte da crítica literária ainda se refere a ti como porta-voz de uma geração. Mas de que geração, né? Porque tu continuas sendo voz, não só de uma geração e nem só da juventude, mas de todos aqueles que têm um fogo vivo dentro de si, dos que ardem, que choram e riem, e que dançam. Com teu texto potente, orgânico, mutante e ousado, antecipaste muito do que começou a ser feito na literatura recente. Tiveste a coragem de abordar diretamente temas que poucos conseguiam mencionar, disseste e continuas dizendo as palavras e as coisas que precisam ser ditas. O teu estilo singular e refinado -- a arquitetura minuciosa em diferentes gêneros literários e linguagens, que conversa com outras artes, tão belamente imagético e musical -- que encantou a mim e tantos outros dos nossos contemporâneos, segue pulsante e magnetizante. Além de biografar o humano do teu tempo, tua arte se projeta no presente, é atemporal. O reconhecimento da tua universalidade é cada vez maior, todavia. Teus livros continuam sendo reeditados, em volumes individuais e edições especiais, caprichadas, inclusive com material inédito que não tiveste tempo de organizar. Novas traduções vêm sendo publicadas no exterior em francês, inglês, espanhol, alemão, italiano e holandês. O interesse pela tua literatura e por ti só aumenta. Na internet e nas redes sociais #CaioF está sempre bombando, és um popstar.
Não deu tempo pra te contar, mas fora aquele inventário astrológico, que chegaste a acompanhar bem no início da pesquisa, realizei também um outro estudo. Chama-se A obra em branco: biografia de um personagem. Ainda não publiquei. Quem sabe alinhas os astros pra acontecer? O ensaio tem a ver com a biografia do humano de que falavas. Lendo tua produção ficcional na ordem cronológica em que escreveste, começando com Limite branco e seguindo por cada livro até os últimos contos, percebi que havia ali uma “história secreta”. Como fala o Borges e como o pentimento das pinturas, aquela palavra labiríntica sempre na cabeça do jornalista de Dulce Veiga. Não sei se foi a tua intenção. Vi claramente essa narrativa subliminar que dá unidade à obra inteira: a biografia de um personagem que vai evoluindo em uma linha de tempo, na formação de si mesmo, de sua consciência e de sua vocação literária. Através dele desenha-se um panorama do humano de quase quatro décadas e que tem como pano de fundo a história do nosso país. Uma história contada por dentro, pelo avesso, pelas emoções. Caio, que gênio! Nos deste mais este presente: uma história que costura todas as histórias.
No jardim onde achei isso há muita coisa para descobrir, revolver, garimpar, pérolas para colher. Sim, tem um bocado de gente revirando a terra, pesquisando para mestrados e doutorados, coisa e tal. Mas tenho certeza de que há muito mais ainda para encontrar na autorrevelação que proporcionas na experiência da leitura, no prazer do texto. Te ler é se ler. Força que nunca seca, teu jardim continua renascendo e frutificando, faz florescer girassóis e ilumina a vida gritando nos cantos da gente.
Ouço tua voz agora, acaricio leve os pelos escuros e macios no dorso da tua mão branca. O disco arranhado trancou de novo. Nada além...

beijo da tua bruxinha,
Amanda C.


Amanda Costa é astróloga, terapeuta floral, escritora e professora, com Doutorado em Literatura Brasileira. Começou seus estudos de Astrologia como autodidata no início dos anos 1970 e entre 1978 e 1981 foi aluna da astróloga alemã Emma de Mascheville. É autora dos livros 360 Graus: Inventário astrológico de Caio Fernando Abreu e de Astrologia: o cosmos e você, que recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre.